terça-feira, 1 de março de 2016

Don Ellis Redescoberto - Por Bruno Vitorino

O trompetista Don Ellis. Fonte: Google Imagens.

Há um filme muito ruim que supreendentemente, ao menos para este que vos escreve, foi bastante aclamado por crítica e público chamado Whiplash. O longa conta a história de Andrew, um jovem baterista de jazz que sonha em ser Buddy Rich, mas que não consegue tocar em double time swing nem manter o andamento de um tema. Por conta disso, apanha na cara, é humilhado publicamente e se submete a outras violências morais do professor-regente, Terence Fletcher, na busca por uma perfeição sem propósito. Risível e imensamente frustrante.

Risível, porque um filme tão raso e clichê, que faz da violência mais banal recurso estético, foi recebido pelos sabichões do cinema e pelo público apreciador do circuito não comercial como uma narrativa brilhante sobre o torturante caminho da excelência artística. Balela! Cisne Negro fez isto. Imensamente frustrante, porque a película não apenas perverte gratuitamente o ideal de mestre, aquela generosa entidade forjada na experiência e na sabedoria, e macula a beleza do vínculo que este estabelece com seu discípulo, como também perde a oportunidade de realmente fazer a leitura crítica que se propôs de uma juventude à deriva, sem objetivos, causas ou utopias. E sem falar da caricatura grotesca que o longa faz do ensino do jazz nas escolas de música e do gênero em si enquanto manifestação artística. Se a intenção era atacar o necrotério que Wynton Marsalis chama de jazz, o resultado foi o tédio. Mas, pelo menos para uma coisa o filme serviu: apresentar à nova geração a Don Ellis Orchestra.

Isso por que Whiplash é um tema “de verdade”, composto por Hank Levy especialmente para a big band do trompetista californiano, que abre o interessante disco “Soaring”, de 1973. A versão original da composição que dá nome ao filme é bem mais rica em termos de interpretação, arranjo e improvisos do que à que foi às telonas no arranjo pasteurizado de Justin Hurwitz, um pianista com treinamento clássico que não entende lhufas de jazz, como ele mesmo admitiu. A gravação original é vibrante: os metais em fortíssimo anunciam o tema num esquema de “chamada e resposta”, logo depois a cozinha estabelece o funkeado 7/8 - com destaque para o baixo elétrico com os captadores abertos e realce nos agudos, dando-lhe uma sonoridade meio rock -, e a melodia vai sendo apresentada numa forma que privilegia seções interpoladas que mudam a atmosfera da composição e oferecem contrastes sonoros fabulosos. Repare, por exemplo, no delicado pontilhismo das cordas servindo de cama para os metais em surdina e no efeito rítmico que esta sobreposição métrica causa logo no primeiro minuto da música. E, não menos importante, o solo de Don Ellis é simplesmente matador.

O trompetista, que se graduou na Boston University, tocou com Charles Mingus (“Mingus Dynasty”), George Russell e inúmeras orquestras, construiu sua carreira musical montando sua própria progressive big band. No entanto, ao contrário do sincretismo de Mingus, que misturava folk music, bebop e música de vanguarda, ou da complexa arquitetura sonora das large ensembles de Oliver Nelson, Ellis privilegiava as experimentações com compassos incomuns, padrões rítmicos assimétricos e coloridos tímbricos exóticos proporcionados por combinações e dobras inusuais de instrumentos. Tudo isso em meados dos anos 1960, quando sua orquestra causou algum impacto no cenário jazzístico.

“Soaring” é um ótimo ponto de partida para os que desejam conhecer a sua música. Acessível a ouvidos pouco afeitos à música instrumental, o álbum traz composições bastante intrigantes que expõem com muita precisão a essência criativa e interpretativa de Ellis, integrando num mesmo território um sólido conhecimento da tradição orquestral do jazz, elementos da música erudita, a sonoridade dos instrumentos elétricos popularizados com a expansão do rock, o elemento supresa da improvisação individual e a plasticidade da malemolênica do funk. Além do hoje famoso “Whiplash”, há temas como a quasi rapsódia “Sladka Pitka”, que vai de uma camerística introdução de cordas e madeiras, passando por um balançado funk em 9/8 até descambar num final abstrato e inesperado; a grooveada “The Devil Made Me Write This Piece” e suas digressões em relação à estrutura principal; “Go Back Home”, puro balanço e metaleiras em evidência; e a lírica “Invincible”, onde a confluência das técnicas de orquestração erudita e jazzística se mostra com mais vigor.

É bem verdade que às vezes a big band coloca um pezinho no cafona, trazendo um pouco daquela sonoridade brega dos anos 1970, especialmente nos momentos em que os arranjos dão muita ênfase às cordas ou quando o técnico de som capricha no reverb do trompete - como em “Image of Maria”. Mas sempre há algo inesperado, uma reviravolta na trama da composição, feito o blues em 7/4 no meio de “Sidonie”, que vale a escuta.

Voltando ao filme, lembro de ter ficado tão indignado com Whiplash que soltei involuntariamente um sonoro “que bosta!” em pleno Cine Rosa e Silva mal terminada a película. Lembro também de um cabra que estava ao meu lado com sua garota me lançar um olhar de reprovação e dizer para ela numa falsa discrição: “É por que é um filme sobre jazz. Se fosse sobre o rock ninguém dizia isso.” Não! Não é um filme sobre o jazz, sobre a artisticidade ou sobre a elevação espiritual proporcionada pela música. É somente uma produção superestimada que faz do jazz um pastiche, do roteiro, um decalque pobre de Kafka e onde o diretor brinca de Lars Von Trier. Fato! Mas não deixa de ser um alento ver, de certa forma, Don Ellis redescoberto através dele.


3 comentários:

  1. Enfim encontrei alguem que tambem achou esse filme ruim. Me senti com raiva de mim mesmo no final!

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  2. Bruno, parabéns pelo texto! Eu não assisti este filme. Mas, o que encontro de gente que o achou fantástico, não está no gibi. Enfim, respeito tua opinião e os argumentos explanados. Abraço, Giba.

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  3. Bruno, parabéns pelo texto! Eu não assisti este filme. Mas, o que encontro de gente que o achou fantástico, não está no gibi. Enfim, respeito tua opinião e os argumentos explanados. Abraço, Giba.

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