O trompetista Don Ellis. Fonte: Google Imagens. |
Há um filme muito ruim que
supreendentemente, ao menos para este que vos escreve, foi bastante aclamado
por crítica e público chamado Whiplash.
O longa conta a história de Andrew, um jovem baterista de jazz que sonha em ser
Buddy Rich, mas que não consegue tocar em double
time swing nem manter o andamento de um tema. Por conta disso, apanha na
cara, é humilhado publicamente e se submete a outras violências morais do
professor-regente, Terence Fletcher, na busca por uma perfeição sem propósito.
Risível e imensamente frustrante.
Risível, porque um filme tão raso e
clichê, que faz da violência mais banal recurso estético, foi recebido pelos
sabichões do cinema e pelo público apreciador do circuito não comercial como uma
narrativa brilhante sobre o torturante caminho da excelência artística. Balela!
Cisne Negro fez isto. Imensamente
frustrante, porque a película não apenas perverte gratuitamente o ideal de
mestre, aquela generosa entidade forjada na experiência e na sabedoria, e
macula a beleza do vínculo que este estabelece com seu discípulo, como também
perde a oportunidade de realmente fazer a leitura crítica que se propôs de uma
juventude à deriva, sem objetivos, causas ou utopias. E sem falar da caricatura
grotesca que o longa faz do ensino do jazz nas escolas de música e do gênero em
si enquanto manifestação artística. Se a intenção era atacar o necrotério que
Wynton Marsalis chama de jazz, o resultado foi o tédio. Mas, pelo menos para
uma coisa o filme serviu: apresentar à nova geração a Don Ellis Orchestra.
Isso por que Whiplash é um tema “de verdade”, composto por Hank Levy
especialmente para a big band do
trompetista californiano, que abre o interessante disco “Soaring”, de 1973. A
versão original da composição que dá nome ao filme é bem mais rica em termos de
interpretação, arranjo e improvisos do que à que foi às telonas no arranjo
pasteurizado de Justin Hurwitz, um pianista com treinamento clássico que não
entende lhufas de jazz, como ele mesmo admitiu. A gravação original é vibrante:
os metais em fortíssimo anunciam o tema num esquema de “chamada e resposta”,
logo depois a cozinha estabelece o funkeado 7/8 - com destaque para o baixo
elétrico com os captadores abertos e realce nos agudos, dando-lhe uma
sonoridade meio rock -, e a melodia vai sendo apresentada numa forma que
privilegia seções interpoladas que mudam a atmosfera da composição e oferecem
contrastes sonoros fabulosos. Repare, por exemplo, no delicado pontilhismo das
cordas servindo de cama para os metais em surdina e no efeito rítmico que esta
sobreposição métrica causa logo no primeiro minuto da música. E, não menos
importante, o solo de Don Ellis é simplesmente matador.
O trompetista, que se graduou na Boston
University, tocou com Charles Mingus (“Mingus Dynasty”), George Russell e inúmeras
orquestras, construiu sua carreira musical montando sua própria progressive big band. No entanto, ao
contrário do sincretismo de Mingus, que misturava folk music, bebop e
música de vanguarda, ou da complexa arquitetura sonora das large ensembles de Oliver Nelson, Ellis privilegiava as
experimentações com compassos incomuns, padrões rítmicos assimétricos e coloridos
tímbricos exóticos proporcionados por combinações e dobras inusuais de
instrumentos. Tudo isso em meados dos anos 1960, quando sua orquestra causou algum
impacto no cenário jazzístico.
“Soaring” é um ótimo ponto de partida
para os que desejam conhecer a sua música. Acessível a ouvidos pouco afeitos à
música instrumental, o álbum traz composições bastante intrigantes que expõem com
muita precisão a essência criativa e interpretativa de Ellis, integrando num
mesmo território um sólido conhecimento da
tradição orquestral do jazz, elementos da música erudita, a sonoridade dos instrumentos
elétricos popularizados com a expansão do rock, o elemento supresa da improvisação
individual e a plasticidade da malemolênica
do funk. Além do hoje famoso “Whiplash”, há temas como a quasi rapsódia “Sladka Pitka”, que vai
de uma camerística introdução de cordas e madeiras, passando por um balançado funk em 9/8 até descambar num final
abstrato e inesperado; a grooveada “The
Devil Made Me Write This Piece” e suas digressões em relação à estrutura
principal; “Go Back Home”, puro balanço e metaleiras em evidência; e a lírica “Invincible”,
onde a confluência das técnicas de orquestração erudita e jazzística se mostra
com mais vigor.
É bem verdade que às vezes a big band coloca um pezinho no cafona, trazendo
um pouco daquela sonoridade brega dos anos 1970, especialmente nos momentos em
que os arranjos dão muita ênfase às cordas ou quando o técnico de som capricha
no reverb do trompete - como em “Image
of Maria”. Mas sempre há algo inesperado, uma reviravolta na trama da
composição, feito o blues em 7/4 no meio de “Sidonie”, que vale a escuta.
Voltando
ao filme, lembro de ter ficado tão indignado com Whiplash que soltei involuntariamente um sonoro “que bosta!” em
pleno Cine Rosa e Silva mal terminada a película. Lembro também de um cabra que
estava ao meu lado com sua garota me lançar um olhar de reprovação e dizer para
ela numa falsa discrição: “É por que é um filme sobre jazz. Se fosse sobre o
rock ninguém dizia isso.” Não! Não é um filme sobre o jazz, sobre a
artisticidade ou sobre a elevação espiritual proporcionada pela música. É somente
uma produção superestimada que faz do jazz um pastiche, do roteiro, um decalque
pobre de Kafka e onde o diretor brinca de Lars Von Trier. Fato! Mas não deixa
de ser um alento ver, de certa forma, Don Ellis redescoberto através dele.
Enfim encontrei alguem que tambem achou esse filme ruim. Me senti com raiva de mim mesmo no final!
ResponderExcluirBruno, parabéns pelo texto! Eu não assisti este filme. Mas, o que encontro de gente que o achou fantástico, não está no gibi. Enfim, respeito tua opinião e os argumentos explanados. Abraço, Giba.
ResponderExcluirBruno, parabéns pelo texto! Eu não assisti este filme. Mas, o que encontro de gente que o achou fantástico, não está no gibi. Enfim, respeito tua opinião e os argumentos explanados. Abraço, Giba.
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