segunda-feira, 19 de março de 2012

Aos Trancos e Barrancos: John Zorn em São Paulo - Bruno Vitorino

John Zorn

    Em sua essência, a música requer movimento constante! Uma busca perene por novos caminhos expressivos que melhor representem as paisagens sonoras imaginadas por um compositor. Às vezes, ele encontra o que procura, e outras vezes não. Contudo, cabe a esse indivíduo que manipula e estrutura os sons (desde que sério e íntegro) ao menos tentar. Sábio é o artista que imerge no mundo que o cerca e se alimenta de toda e qualquer manifestação humana que encontre a fim de criar algo novo. John Zorn é definitivamente um desses artistas que se lançam numa investigação infindável do mundo material (realidade). Fugindo do perigo da zona de conforto, o saxofonista se coloca em xeque a todo instante para sempre se reinventar e descobrir novas possibilidades na música.

     Nascido em Nova Iorque em 2 de setembro de 1953, começou a estudar piano, guitarra e flauta ainda na infância assimilando do jazz e folk music ouvido por seus pais aos compositores eruditos do século XX que descobriu em seus estudos. Seu contato com o Free Jazz se deu na Webster College em Saint Louis e sua vida mudou radicalmente quando, em 1969, ouviu o disco “For Alto” do saxofonista Anthony Braxton. Decidiu que deveria adquirir um sax alto e se dedicar ao instrumento. Retornou a Nova Iorque em 1975 e desde então se estabeleceu como uma das figuras-chave da cena free da cidade aglutinando vários instrumentistas interessados na perspectiva aberta de seus escritos.

    Prolífico compositor, Zorn expõe sua pluralidade em vários projetos com as mais variadas formações e enfoques: Pool, Lacrosse e Cobra (esquemas improvisativos ditados por cartas, como num jogo); News for Lulu (um trio de jazz com o guitarrista Bill Frisell e o trombonista George Lewis); Naked City e The Painkiller (uma mistura de thrash metal, folk, japanoise, jazz); Film Works (trilhas sonoras para filmes); dentre outros inúmeros. Além de sua produção autoral, ele também se dedicou a reinterpretar outros ícones: Spy vs Spy (a música de Ornette Coleman); The Big Gundown (um épico dedicado à obra de Ennio Morricone); Sonny Clark Memorial Quartet (tocando apenas composições do pianista Sonny Clark).

     No início dos anos 1990, após a morte de seu pai, John Zorn teve uma epifania e se voltou para suas raízes judaicas, fundando assim um de seus projetos mais aclamados: Masada. Originalmente um quarteto[1] formado por Zorn (sax alto), Dave Douglas (trompete), Greg Cohen (contrabaixo acústico) e Joey Baron (bateria); o Masada traz uma nova abordagem da música tradicional judaica, enxertando nela elementos jazzísticos e de improvisação livre.
Masada: Dave Douglas, John Zorn, Joey Baron e Greg Cohen (esq. p/ dir).
     Assim, quando Dave Douglas postou no Facebook em janeiro que a formação clássica do Masada entraria em turnê na América Latina, tratei logo de me informar sobre os concertos no Brasil. A oportunidade de ver um dos combos mais importantes do jazz contemporâneo (e que muito me influencia) me deixou bastante animado! Descobri que estavam previstas duas gigs por estas terras: dia 16 de março no Teatro Tom Jobim no Rio de Janeiro e dia 17 de março no Cine Joia em São Paulo. Por gostar muito da cidade, optei por São Paulo e paguei os R$ 100,00 pelo ingresso.

     Antes de discorrer sobre a apresentação, gostaria de tecer alguns comentários tanto ao lugar escolhido para o concerto quanto ao público presente.

    O Cine Joia é um espaço charmoso! Localizado no bairro da Liberdade, funcionou originalmente como cinema, depois como igreja pentecostal e finalmente como casa de espetáculos. Nos dizeres da produção, o Joia abre “as portas com toda a infraestrutura necessária para receber bandas de médio porte dos mais variados estilos musicais”. De fato, a estrutura é notável, mas para a música pop. Deixo claro que não se trata aqui de preconceito, e sim de reconhecer as nuanças das diversas manifestações da música e suas implicações.

    Seria coerente um show de um grupo como o Atari Teenage Riot sendo realizado num teatro com o público calmamente sentado a ouvir contemplativamente?! Obviamente que não! É necessário se mexer, interagir aos gritos, tomar umas cervejas, cantar junto e tudo mais. Por outro lado, alguém consegue imaginar um concerto de jazz com pessoas em pé a se mover, falando alto o tempo todo, fumando e bebendo cervejas? Não! A razão: essa música é frágil, fugaz e requer concentração tanto dos instrumentistas quanto da audiência para ser plenamente concebida/captada. E foi exatamente esse ambiente (hostil) que o Masada e aqueles poucos que foram efetivamente ouvir o quarteto encontraram.

     A insatisfação de John Zorn era clara e em alguns momentos, palpável! Até onde pude contar, vi-o repreendendo por três vezes um rapaz que insistia em lhe tirar fotos com flash. Uma mulher berrava: “Vai, Corinthians!”, outro gritava: “Gostoso!”; durante os improvisos... Ao meu lado, uma senhorita que não fazia a menor idéia do que se passava diante de seus olhos tagarelava e pavoneava sua vã sofisticação para todos que pudessem ver. Um breve arrependimento me veio à cabeça de modo que pensei quase sem querer: “Deveria ter escolhido o Rio!”. Foi preciso certo esforço para focar na música...

    Apesar das adversidades, ver o Masada em ação foi uma experiência magnífica! O entrosamento construído pelo grupo ao longo de 19 anos de estrada é impressionante. A comunicação é telepática! Bastava um simples gesto de Zorn para que os demais dissolvessem o tema e outro aceno para que o recompusessem e o levassem adiante. Intensidade e movimento, elementos bastante caros ao saxofonista!

     Em “Mibi”, o quarteto mostrou o quão alto pode voar alternando melodias angulosas com ruídos e efeitos, estruturas definidas com momentos de puro caos. Tudo sempre conduzido por Zorn. Já em “Beeroth”, imperou o solo avassalador de Joey Baron. No delicado tema “Tharsis”, Greg Cohen despejou sobre todos sua plenitude melódica e sua beleza de timbres com um improviso extremamente sentido em sol menor. Com “Piram”, o Masada tirou o fôlego de todos com o trompete alucinado de Dave Douglas e com Zorn em sua respiração cíclica lancinante. A última composição apresentada na noite (o segundo bis) foi “Hath Arob”. Parecia uma brincadeira o que os quatro faziam. O tema principal se decompunha com tanta rapidez à medida que se sucediam os esquetes sonoros que era difícil de acreditar. Uma aula de dinâmica e controle!

     Falando do Masada, Joey Baron disse à revista Rolling Stone Brasil que “muito da música com a qual as pessoas têm sido golpeadas hoje em dia é produto, são negócios. Somos artistas, amamos música. Nossa razão para fazer música é o amor. Somos curiosos e interessados por ela, queremos pintar uma imagem do mundo através dela.” Após o concerto, demorei algum tempo a voltar a mim. Saí do Cine Joia maravilhado com o que presenciei: o jazz sendo tratado como matéria viva, em desenvolvimento. E a julgar pela folia que fazia o meu filho na barriga da mãe depois dessa experiência, acredito que mais um indivíduo fora convencido de que a música é algo que vale a pena amar.


[1] Os desdobramentos desse projeto levaram Zorn a escrever mais de 600 temas que foram executados pelo quarteto e outras formações: trio de cordas, piano solo, cello solo, quarteto de vozes, piano trio. Existe uma vasta discografia para esse projeto editada pelo selo Tzadik do próprio John Zorn.

3 comentários:

  1. Parabéns pela oportunidade de assistir a apresentação de Zorn, é lamentável que o local tenha sido tão inadequado, e, para piorar, uma plateia, em parte, tão desrespeitosa, importunando os que realmente estavam ali para curtir a apresentação, deve ter sido irritante!
    Cristina

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  2. Fiquei absolutamente chocada com o que aconteceu no Cine Joia, em São Paulo.
    Se existe uma cidade no Brasil que sempre julguei perfeita para receber shows deste calibre é Sampa.
    Mas a estrutura oferecida pelo local do show (o Cine Joia é LINDO, mas completamente inadequado para o tipo de música em questão) e principalmente o PÚBLICO me encheu de vergonha.
    Uma pena que um concerto tão excepcional tenha tido seu brilho abafado pela animosidade de uma platéia totalmente sem noção.
    Tenho certeza que dentre as 400 (??) pessoas que lotaram o local, umas 50 sabiam exatamente o que estavam fazendo ali. O resto (resto mesmo! Chorume brabo!) era um (de)composto de "cenosos descolés" que foram fazer média Deus sabe com quem...
    E olhe que o ingresso não foi dos mais baratos!
    Uma tristeza diante de uma oportunidade impar.
    Apesar de tudo, valeu MUITO a pena assistir a um gênio vivo em pleno processo de criação.
    Me senti lisonjeada de poder ter tido acesso a tal experiência, tão marcante.
    Espero que um dia Zorn volte ao Brasil e que não demore. E que tenha a sorte de tocar para um público decente.

    Tatiana Monteiro

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  3. O projeto Masada é interessante! Já a parte solo, é sacal.

    Gilberto da Costa Carvalho

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