Saía eu do Parque da Jaqueira sábado passado para
comer uma tapioca com meu filho Theo, após uma tarde de farra e brincadeiras,
quando, ao cruzar a banca de jornal, deparei-me com a edição de abril da
Rolling Stone que estampava na capa uma foto dos Beatles chegando a Los Angeles
em 1964 com a manchete: “como os Beatles conquistaram o mundo”. Como venho há
algum tempo me lançando em pesquisas sobre o que viabilizou o Fab Four enquanto fenômeno de massa de
proporções globais, fiquei curioso por saber a que conclusões haviam chegado.
Como era de se esperar, no entanto, o que encontrei foi um texto bastante
descritivo do ponto de vista factual e destituído de análises sobre o contexto
histórico em que a banda inglesa estava inserida e as estruturas
sócio-econômico-culturais que possibilitaram seu estrondoso sucesso. Na
verdade, o artigo do jornalista Mikal Gilmore nada mais é do que um resumo
descarado, e um quê sensacionalista, dos fatos narrados no indispensável livro
“The Beatles: A Biografia”, de Bob Spitz, sobre o tsunami que foi a chegada do quarteto de Liverpool aos Estados
Unidos.
Mas, e o antes? Como quatro garotos oriundos da
classe operária de uma cidade portuária e desimportante - do ponto de vista
cultural - feito Liverpool, fadados a cumprir um papel proletário na engrenagem
social, subverteram o destino histórico que lhes cabia? O que era o rock n’roll
para a juventude urbana da época? O que desencadeou a beatlemania? De que
modo eles conseguiram revolucionar a produção cultural do século XX e formatar
o rock como lucrativo negócio na indústria do entretenimento de larga escala?
Que fronteiras estilísticas delimitaram e que conquistas estéticas alcançaram?
Finalmente, como e por que viraram deuses? Eram perguntas que ficavam no ar.
Não pretendo aqui, antecipo, respondê-las. Isto não é uma dissertação de
mestrado em Cultura e Sociedade ou artigo acadêmico cheio de dureza literária e
rigor metodológico, é um texto para um blog. Porém, procuro mais compartilhar
com os que, pelo prazer da leitura ou desvario do acaso, leem essas linhas as
conclusões a que cheguei e, de repente, lançar luz sobre certos aspectos do
fenômeno Beatles que passam despercebidos ante a louvação fervorosa do
fanatismo e o jornalismo de superfície.
Primeiramente é fundamental ter em mente que as
revoluções tecnológicas empreendidas na Era da Indústria se desdobraram para
além das macro-esferas da política e da economia e transformaram radicalmente
os campos da cultura e a própria organização social do mundo ocidental na
passagem do século XIX para o XX, e que foram essas mudanças que forneceram as
bases para o surgimento da sociedade do consumo de massa que possibilitou a
eclosão do fenômeno Beatles. Do ponto de vista social, o estabelecimento da jornada
de trabalho e seu, a princípio mínimo, contraponto lúdico na vida cotidiana do
trabalhador da Grande Fábrica propiciou o surgimento de todo um mercado da
diversão com o aparecimento de um público disposto a pagar por espetáculos de
entretenimento em seu escasso tempo livre e um setor especializado da sociedade
que lhes fornecia os produtos culturais adequados para tanto: o futebol, o
teatro de variedades, o cinema, as orquestras de baile, as casas de ousadia
(por que não considerá-las?); tudo isso surge e/ou se consolida nessa época na
vida pública da sociedade pós-industrial.
Especificamente no que diz respeito à música, as
inovações tecnológicas proporcionaram sua gravação e reprodução, pondo em
segundo plano a até então obrigatória comunicação direta entre o instrumento e
o ouvido humano. Com a revolução da reprodutibilidade técnica da arte de
organizar os sons, o seu consumo passou a ser indireto e virtual, ou seja,
desumanizado, pois a fruição estética da música não mais requeria a experiência
ao vivo. Agora era possível chegar em casa e por a vitrola (no princípio era o
fonógrafo) para tocar e se deleitar com o som “real” e “miraculoso” que
preenchia o lar. Isso permitiu não somente que artistas passassem a atingir
públicos antes inimaginados, como também ampliou significativamente o escopo
mercadológico da música, exigindo da nascente indústria cultural a
instrumentalização de toda essa vasta cadeia produtiva que se configurava, de
modo a melhor explorá-la – do luthier ao
produtor executivo, do compositor à equipe de marketing. Como bem disse o historiador Eric Hobsbawn, foi a lógica
combinada da tecnologia e do mercado de massa que promoveu a verdadeira
revolução das artes no século XX, promovendo a democratização do consumo
estético[1]. Algo
que indubitavelmente beneficiou a eclosão de uma banda como os Beatles.
O mundo que surgiu após a Segunda Guerra Mundial
aprofundou e desenvolveu ainda mais essas estruturas na trama das relações
humanas. Superados o terror e as privações do conflito, sobreveio um grande
desenvolvimento econômico para as democracias liberais da Europa Ocidental e os
Estados Unidos – os vencedores da guerra, obviamente – e uma intensificação das
relações comerciais entre esses Estados que gerou o aumento da sua classe média
e uma maior irrigação financeira de sua tessitura social. Com isso, o bem-estar
foi colocado no cerne da vida público-privada dessas sociedades e
institucionalizado como política pelos governos. E nesse sentido, vale destacar
o crescente espaço ocupado pelo ócio na vida do cidadão urbano comum. Assim,
com mais dinheiro na carteira e o aumento do tempo livre no dia-a-dia do
trabalhador médio dos centros urbanos, a indústria da diversão, atrelada à
publicidade e às conquistas tecnológicas do pós-guerra[2],
encontrou terreno fértil para se multiplicar e se estabelecer como fonte
primária do fornecimento da Cultura. Dessa forma, os valores tradicionais que
ligavam a Arte a um caráter artesanal, pessoal, reflexivo e transcendental (e
que soavam elitistas e esnobes), foram substituídos pela massificação, pelo
espetáculo e pelo mais puro e simples viés lúdico. Nascia o establishment pop que acolheu os
Beatles.
Nesse contexto, é possível entender como o rock
n’roll se consagrou como o universo simbólico do jovem urbano, indo muito além
da música em si. A abertura dos parâmetros morais da sociedade (a começar pela
vida sexual), a necessidade de um novo arcabouço ideológico para alicerçar a
compreensão do mundo tal como se apresentava e certa rebeldia que se instalava
no âmago da juventude por conta de uma angústia existencial e um tédio
crescentes - bem como uma tendência clara à fuga da realidade – exigiam uma
nova forma de ser e se expressar. O jazz, até então música urbana por
excelência e que trazia em seu público uma maioria jovem, não atendia a essas
demandas. O swing, com suas grandes
orquestras, crooners e toda a pompa e
circunstância dos ballrooms, soava enfadado e exalava uma morbidez
senil; era afinal uma música do passado, do tempo de seus pais. Por sua vez, o
jazz moderno – bebop, cool, hard bop –
com sua linguagem rebuscada, seu ar
intelectualizado e sua perspectiva contemplativa da apreciação estética que
escavava um abismo profundo entre artista e público, denotando um
distanciamento e frieza impenetrável à tietagem e veneração, afastou de vez a
juventude de seus domínios. Algo que se tornou ainda mais grave nos anos 1960
com a eclosão do free jazz que trazia
severas rupturas musicais e engajamento político mais incisivo. Era necessário
algo mais simples, direto, visceral, redentor, um tanto desaforado e que
combinasse com o showbiz. O rock caía
como uma luva.
Isso esclarece o porquê da proliferação, nessa
época, de tantas bandas de rock ao redor do globo e o crescente interesse das
gravadoras em encontrar no meio delas sua mina de ouro. Se Elvis Presley com
sua voz grave e seu requebrado “obsceno” deu o pontapé inicial à disseminação
do rock enquanto cultura jovem urbana (e lucrativa sob ótica da indústria
cultural), foram os Beatles e seu Iê Iê Iê que conseguiram, contudo, captar o
clamor juvenil por uma identidade e condensar imenso talento artístico, pitadas
de insolência, boa dose de carisma e uma capacidade incrível de pôr a mídia a
seus pés e de se conectar com o público; requisitos necessários para se
tornarem um fenômeno de proporções planetárias. “Please, Please Me”, segundo single dos ingleses lançado no início de
1963, foi um estouro e a fagulha que acendeu a chama da beatlemania. “Ela (a
canção) concentra os principais elementos do som emergente do grupo: melodias
cativantes, letras inteligentes, harmonias fluidas com três vozes,
instrumentação ágil e acordes dinâmicos estruturados em padrões que
transformaram um estilo já cansado.”[3] O
sucesso desse compacto retira o quarteto da periferia do rock britânico e os coloca
no epicentro do cenário inglês. Conquistar os Estados Unidos seria o “próximo
passo” mais natural a ser dado.
O que se segue a partir daí é bastante conhecido:
histeria, multidões e delírio. Mas, duas coisas me chamam a atenção no tocante
à invasão aos EUA e seus desdobramentos. Primeiro é que os Beatles conseguiram
reverter o sentido do fluxo cultural do establishment.
Até então eram os norte-americanos que ditavam as regras do manancial da música
pop, mas isso fora mudado com o
interesse estético e mercadológico, desencadeado pelo Fab Four, quanto à produção inglesa e que abriu as portas para que
proeminentes grupos britânicos inundassem o mercado estadunidense, naquilo que
se convencionou chamar de British
Invasion. Inicialmente,
Dusty Springfield, Yardbirds, The Rolling Stones e, um pouco depois, The Mood
Blues, The Who, Cream, Led Zeppelin, Pink Floyd, Black Sabbath, para citar só
alguns. (Vale lembrar que um tal Jimi Hendrix teve de se refugiar em
Londres para que pudesse ser descoberto e ouvido em seu próprio país). O outro
ponto que me salta aos olhos é a discussão sobre o caráter transitório do grupo.
“Seriam os Beatles uma moda passageira?” era uma pergunta que frequentemente
ecoava nos meios de comunicação. Ninguém entendia ao certo o que se passava, e a
pouca perspectiva histórica que a trama dos fatos revela enquanto acontece
levava muitos (inclusive os Beatles) a se questionar sobre a durabilidade de
seu sucesso. Até quando quatro rapazes de terninho, com cabelos atrevidamente grandes,
cantando sobre segurar a mão da garota amada ou o segredo de uma paixão
adolescente, a distribuir sorrisos e piscadelas à plateia eufórica iriam durar?
Jack Gould, o redator de televisão do New York Times, foi categórico: a banda
(e todo o gigantesco furor a sua volta) “parecia ser um belo placebo para as
massas”[4]. E ele
estava certo! Naquele momento... Mas aí veio o grande salto que consagrou os
Beatles à História.
Não obstante o sucesso da banda, o descontentamento
se apossava de seus integrantes. Estavam fartos de ser o baluarte da verve
adolescente, da irracionalidade da beatlemania e, principalmente, do viés
mercadológico e artificial que sua música havia assumido. Existia uma imanente
necessidade de se lançar a voos estéticos mais ousados, acolher os pensamentos
interiores mais recônditos e expressar os sentimentos que paulatinamente brotavam
no âmago de cada um. John queria mergulhar em sua faceta mais política e
discorrer sobre suas emoções reprimidas; Paul gostaria de explorar mais detalhadamente
a construção narrativa de suas letras e libertar de vez sua incansável curiosidade
musical; George desejava materializar em canções sua consciência cósmica; e Ringo
queria simplesmente acabar com toda aquela loucura. Não fazia mais sentido,
portanto, continuar escrevendo músicas ingênuas em terceira pessoa, com poucos
acordes e estrutura simples para o entorpecimento frenético de uma juventude vã,
como “She Loves You”, por exemplo. Os Beatles amadureciam, entravam na vida
adulta, e, logo, mudavam a maneira de enxergar as circunstâncias que os rodeavam
e os caminhos que haviam trilhado até então. Buscavam-se agora letras de
caráter confessional, reflexivas e profundas do ponto de vista poético, progressões
harmônicas mais complexas, experimentar novas técnicas de gravação, instrumentação
e arranjo; enfim, dar livre vazão a sua imaginação criativa. “In My Life”,
faixa do disco “Rubber Soul” de 1965, parece-me ser a primeira grande prova
dessa mudança de sentido estético/estilístico. Com essa guinada, os Beatles
deixaram de ser meros entertainers para
se tornarem artistas propriamente ditos, subvertendo a lógica de mercado e insuflando
no establishment pop, diga-se, alguns
preceitos modernistas da Arte até então ignorados, como a integridade estética
do artista, a elaboração temática de um trabalho, a preocupação com o conteúdo
e a densidade expressiva da obra. Deixaram de ser uma banda de palco, devido às
limitações físicas das apresentações, para se tornarem uma banda-conceito nas
infinitas possibilidades do estúdio, tendo o disco como o suporte de seu fazer
artístico. “Revolver”, “Sgt. Peppers”, “White Album”, “Abbey Road”; disco após
disco, eles apontavam novas direções. De habilidosos compositores de sucesso a
gênios criadores de um universo artístico cheio de significado interno e
dinâmica; de ídolos de uma geração a deuses transformadores dos rumos da História.
Após refletir sobre tudo isso, e ouvir “Because” pela
enésima, só me resta perguntar: como ignorá-los depois de tudo isso?!
[1]
HOBSBAWN, Eric; “Tempos Fraturados: Cultura e Sociedade no Século XX”,
Companhia das Letras, 1ª edição, São Paulo, pág. 290.
[2] No
tocante ao salto tecnológico no ramo musical, só para citar algumas inovações,
temos surgimento do disco de 45 rotações, as gravações em high-fidelity, os primeiros instrumentos elétricos, sofisticação
dos equipamentos de som.
[3]
SPITZ, Bob; “The Beatles: A Biografia”, Editora Lafonte, 2ª edição, São Paulo,
pág.357.
[4]
Idem; pág 468.