Se vens a uma terra
estranha
Curva-te
Se este lugar é
esquisito
Curva-te
Se o dia é todo
estranheza
Submete-te
- És infinitamente
mais estranho
Orides Fontela
Querido leitor,
Você poderia me
dizer, por gentileza, onde está passando o novo Star Wars? Falo sério! Porque, a
julgar pelo filme a que assisti hoje no cinema e pela euforia generalizada que
viraliza nas rede sociais deste vilarejo, só posso ter visto um outro filme que
não O Despertar da Força. Sinceramente!
Não consegui fazer a relação entre o que se passou na tela e o regozijo
coletivo que faz a cabeça de nerds,
saudosistas e coolhunters. E antes que reclame de minha costumeira chatice e me pergunte
todo afetado, digo: sim!, desde de criança sou um grande entusiasta da saga
Star Wars, vi não sei quantas vezes todos os filmes e, embora desconfiado,
estava bastante curioso com uma nova trilogia dirigida por J.J. Abrams. Mas, o
resultado foi para mim uma decepção absurda! Desapontamento ainda mais gritante
por ser eu, ao que parece, e para minha surpresa, um raro espécime de entusiasta
frustrado com o novo filme, já que todos, público e especialmente a crítica, só
têm mil maravilhas a dizer sobre a película.
Bem, os entendidos
de cinema podem até vir aqui se meter em nossa conversa para querer vomitar
toda sua verborragia enfadonha e saracotear sua autoridade risível, tal como
um pavão velho e depenado, para justificar a glória cinematográfica que é O Despertar da Força. Mas eu, este bicho
estranho que não se deixa enquadrar por tendências, modismos e oba-oba, amante do
universo Star Wars de longa data, digo com muita tristeza que o filme é um
desastre. “Queiram ou não queiram os juízes” do gosto. Ponto final.
Nada lá faz sentido, meu caro. A começar pela trama
solta e confusa em que os eventos simplesmente acontecem por si. Não existe uma
construção narrativa que explique, por exemplo, por que a Primeira Ordem existe
e como ela conseguiu se estruturar de uma maneira tão grandiosa a ponto de por
a República em xeque do jeito que faz. Vale lembrar que O Retorno de Jedi dá um fecho épico - e sem furos - a toda a saga:
após uma expansão político-militar contundente capitaneada por Darth Sidious (o
imperador) e Darth Vader, o Império é derrotado pela Aliança Rebelde; sua arma
suprema, a estrela da morte, destruída; e seus líderes, mortos. A paz se impõe
sobre a galáxia, os símbolos do Império são destroçados, Luke Skywalker se
firma como a nova esperança da Força, Leia assume sua realeza e a República se
refaz após um período de totalitarismo. Como pode agora, meu Deus do céu,
começar tudo do zero como se nenhuma batalha tivesse sido travada e nenhuma
guerra tivesse sido vencida? O filme inteiro acontece nesse mero desenrolar de
fatos soltos no vento, num clima irritante de déjà vu, como se fosse uma versão alternativa para Uma Nova Esperança. E quando penso, meu
caro, no que foi a densa teia narrativa de
A Ameaça Fantasma – até então o mais fraco dos filmes – que prepara o
terreno para o esfacelamento da República e a ascensão do Lado Negro e o
comparo com essa nova abertura de trilogia... Chega dá uma tristeza.
Outro ponto que
me chamou atenção foi a superficialidade dos personagens: eles não são
construídos, são apresentados, impostos goela abaixo, sem qualquer profundidade
emotiva. Assim, “bandidos e mocinhos” agem como autômatos desprovidos daquela imprescindível
dimensão humana, seja boa ou má, que dá vida a esses seres fictícios e os põe emocionalmente
acessíveis ao público, de modo que O
Despertar da Força traz tão somente criaturas estranhas plasmadas numa tela
de cinema. E todos sabem, desde os tempos de Aristóteles em seus estudos sobre a
poética, como esse vínculo que só a verossimilhança proporciona é fundamental
para a fruição tanto estética quanto humana da arte de encenar, de criar sonho.
Por isso, com esse episódio VII, o público se torna uma espécie de voyeur que apenas observa à distância um
espetáculo marcado pela pirotecnia e o enfado. J.J. Abrams consegue a façanha
de transformar o cinema num “lugar onde ignorantes são convidados a ver
sofredores”, para citar um axioma de Platão a respeito do teatro que me parece bastante adequado aqui.
Também marca
presença nesse novo filme os velhos clichês de sempre. E como é cansativo, caro leitor,
o óbvio sendo jogado na sua cara o tempo todo. É como se Hollywood simplesmente
não conseguisse superar as velhas e novas questões geopolíticas dos EUA e o
sentimetalismo barato das soap operas para
fazer do cinema o território do pastiche fuleiro, repleto de alegorias
desgastadas e cenas desnecessárias. A Primeira Ordem remete claramente aos
nazistas com sua indumentária e gestual, e para não deixar qualquer dúvida até
para o mais desavisado fã, o diretor ainda arruma um general galego com sotaque
germânico para comandar da tropa. Já o vilão da hora, Kylo Ren, traz o ar
muçulmano materializado em sua máscara de contornos prateados, que me remeteram
a arabescos, e no traje de beduíno. Isso para não falar – e aqui vai um spoiler – no fato de que ele é o filho-rebelde
“mamãe não me deu meu All Star” de Han Solo e Leia, e, como você deve imaginar,
rola todo um sentimentalismo meloso. A conclusão desse arco, por sinal, é pra
lá de óbvia: no que o senhor acha que deu o encontro de um papai “não faça isso,
eu te amo” com um filho “eu sou malvadão mesmo e tenho sangue nos olhos!”? Para
mim, num ultraje. A morte de Han Solo foi um desrespeito não só a um personagem
importante em toda a construção da história, mas à saga inteira! Poderia dizer
que foi o assassinato do personagem certo na hora errada e da forma mais errada
possível. Patético...
E o que dizer da
protagonista Rey, uma catadora de lixo – na verdade de bugigangas eletrônicas
que troca por comida – largada num planeta decrépito que de uma hora para outra
se torna arquétipo de amazona da Força? Um desastre, meu camarada! Como pode a
Força se revelar assim por pura conveniência, de modo absolutamente
involuntário, como se fosse uma simples manifestação fisiológica do corpo,
feito um arroto ou uma sede repentina, quando o domínio desta a energia que
envolve os seres vivos nasce justamente de inverso do orgânico: do árduo
treinamento e da disciplina implacável? É um personagem imbuído de uma metáfora
tão pobre sobre a vocação e o destino que dá raiva. Raso e autoexplicativo como
personagem de novela da Globo. E ficarei por aqui,
porque se me alongar para comentar tudo o que me desagradou, isso deixará de
ser uma carta e se tornará uma dissertação.
Eu até entendo a
ideia de J.J. Abrams em “rejuvenescer a franquia quase quarentona Star Wars,
apresentando-a para uma nova geração sem esquecer dos fãs maduros”, como diz Érico Borgo em sua crítica no site Omelete. Mas, o grande enigma para mim é: será que
precisamos mesmo de uma nova trilogia de Star Wars? Obviamente que não, porque
nada justifica macular o legado de uma obra que revolucionou a história do
cinema, delimitou um novo imaginário e marcou gerações. Contudo, o que me
interessa não é a obviedade – mais uma – desta resposta, e sim seus
desdobramentos mais subjacentes e incômodos. De tal forma, penso que a “profanação”
desse universo cultural chamado Star Wars denuncia o empobrecimento criativo
que vivenciamos hoje, a presentificação do passado na forma de produtos
culturais dotados de “memória” que dão a ilusão do vintage, do distanciamento e da novidade ante a produção atual
marcada pela lógica do mercado e do descartável, e, sobretudo, denuncia o
quanto foi reconfigurado o velho esquema que atrelava o consumo – inclusive de bens
culturais – às obrigações da diferenciação social e o vincula agora à busca de
experiências, ao fomento de modos de vida intercambiáveis e à sensação de
pertencimento a uma coletividade que garanta ao indivíduo descentrado,
midiático e hedonista de nossos tempos alguma identidade embalada numa
pacotilha cool. Pois, como dizem os
sociólogos Lipovetsky e Serroy, “o consumo com componente estético adquiriu uma
relevância tal que constituiu um vetor importante para a afirmação identitária
dos indivíduos”[1].
E quem não quer fazer parte do delírio coletivo, sentir o glamour da apreensão fashionista de um consagrado artigo de
época? É um espetáculo triste de se testemunhar.
Por todas estas
questões, meu caro leitor, só me resta torcer para que os dois próximos
episódios salvem o que este conseguiu destruir. J.J. Abrams me deu pouquíssimos
elementos para inferir o que virá na sequência – somente a aparição de Luke,
que foi de arrepiar, diga-se. Contudo, sendo pragmático e trabalhando com o que
me foi apresentado, sinto um grave desequilíbrio na filmografia Star Wars que será
extremamente difícil de equalizar. Espero estar redondamente enganado. É
esperar para ver.
Cordialmente,
Bruno Vitorino
[1] LIPOVETSKY, Gilles e SERROY, Jean; A
Estetização do Mundo: Viver na Era do Capitalismo Artista, Companhia das
Letras, 1ª edição, São Paulo, 2015, pág. 31.