O Jornal do Commercio publicou ontem (04/01) no Caderno C
uma extensa matéria sobre a recém-lançada caixa do Miles Davis Quintet, “All of
You: The Last Tour 1960”. Realmente, este lançamento é importante, já que
documenta um período histórico muito interessante do combo, em que se ouve um
Coltrane alucinado (e incompreendido) com suas frases incendiárias - as
chamadas "sheets of sounds" -, experimentando progressões harmônicas
intrincadas em plena improvisação e tendo total liberdade para transitar pela
forma dos temas o quanto quisesse; e um Miles Davis que, se por um lado rompia
com a tradição do hard bop estabelecendo os alicerces do jazz modal com sua
linearidade e uso dos espaços, por outro não abria mão de standards conhecidos
em seu repertório, sempre focando, contudo, no risco e na espontaneidade
durante as performances.
É realmente incomum se deparar com um jornal pernambucano
dando espaço ao jazz, essa música, via de regra, tão incompreendida e desprestigiada
pelos grandes veículos de comunicação, e ter elaborado comentários a respeito
de um lançamento notável e de artistas fundamentais para a música popular do
século XX. Eis o mérito do artigo. Para isso digo: bravo!
No entanto,
deparei-me com algumas inconsistências ao longo da matéria, de modo que tomei a
liberdade de fazer algumas considerações que me parecem necessárias:
1) O autor do texto
cita o caso em que Miles agride Coltrane nos bastidores e diz que "o
saxofonista simplesmente foi embora". Não foi bem assim. Essa agressão
famosa, digamos assim, no mundo do jazz aconteceu no "Café Bohemia"
em outubro de 1956. O fato é que Miles ficou irritado com Coltrane, pois ele
estava chapado de heroína, moribundo em pleno palco (em alguns momentos,
cochilando) e errando as músicas. No intervalo entre os sets dessa gig, Miles
perdeu a paciência e bateu em Coltrane, que estava ainda sob os efeitos da
droga. No instante em que essa cena ocorreu, Thelonious Monk, que teve uma
rusga séria com o trompetista logo após o Newport Jazz Festival de 1955, estava
no camarim, viu tudo e disse para o saxofonista: "Você não precisa passar
por isso. Venha tocar comigo". Mas, isso só aconteceu em abril de 1957,
quando Miles finalmente demitiu Coltrane por conta dos problemas com a heroína,
e este se juntou ao quarteto do pianista. Miles fala desse episódio em sua
autobiografia "Miles Davis: A Autobiografia", escrita em parceria com
o jornalista/poeta Quincy Troupe; o texto no encarte do disco "Thelonious
Monk Quartet with John Coltrane at Carnegie Hall" também menciona o
acontecimento; e, por fim, a biografia de Monk, "Thelonious Monk: The Life
and Times of an American Original", também discorre sobre o caso.
2) O texto diz que
"era evidente que Coltrane já havia criado seu próprio tipo de
blues". Ao que parece, a intenção do jornalista neste trecho era promover
uma espécie de trocadilho ou referência implícita entre “seu próprio tipo de
blues” e “Kind of Blue” (e não Blues como está escrito em duas ocasiões), o
icônico disco do Miles; mas dizendo, no fim das contas, que o saxofonista já
encontrara sua identidade artística. Certo. Porém, em termos estritamente
musicais, no que diz respeito ao gênero, Coltrane era tradicionalista,
respeitando muito a "forma blues" - seus 12 compassos, seus pontos de
apoio harmônicos, sua estrutura melódica na construção temática -, portanto, a
rigor, ele não "criou seu próprio blues". A única exceção a essa
rigidez na arquitetura sonora talvez seja um tema dele chamado "Locomotion" -
que por sinal é de 1957, do obrigatório álbum "Blue Train" -, em que
ele sobrepõe à forma blues clássica o turnaround disfarçado da estrutura
"rhythm changes" no “B” (ou seja, insere uma seção de dominantes
estendidas em movimento cromático descendente - Ab7 / G7 / Gb7 / F7), e termina
a música sem resolver na tônica (Bb7), aterrissando na V (F7) após um giro
harmônico descendente. Todavia, ainda assim ele não inventa uma nova estrutura
blues, e sim acrescenta-lhe outra.
3) Num outro
momento, o texto traz: "antes de partir para a turnê, o saxofonista lançou
o álbum Giant Steps, em que muda de tenor para sax alto". Nada mais
absurdo! Coltrane não muda para o alto nesse trabalho! Na realidade, este fora
o seu instrumento de aprendizado quando muito jovem e tocava em bandas de
rhythm’ n’ blues nos anos 1940. Mudou para o tenor influenciado por Lester
Young. No entanto, Coltrane passou a tocar sax soprano na virada dos anos
1950/60 por conta do impacto que lhe causou Steve Lacy, que tocava
exclusivamente o soprano, alternando-o eventualmente com o sax tenor. O disco
"Avant-Garde", gravado em 1960, mas só lançado posteriormente, traz o
primeiro registro desse instrumento por parte de Coltrane na música "The
Blessing".
Além do mais, a
relevância histórica de "Giant Steps" se dá pelo inédito horizonte
harmônico que Coltrane abre ao inserir no jazz o sistema de tônicas
desenvolvido por Nicolas Slonimsky, que, a grosso modo, tratava-se de dividir
matematicamente a oitava de uma tonalidade em partes iguais (2, 3, 4, 6 ou 12
partes), estabelecendo "centros tonais" interdependentes (com o mesmo
peso de "fundamental" na progressão), interligados por acordes
cadenciais. O tema "Giant Steps", por exemplo, é dividido em três
partes com os centros sendo Sol Maior, Si Maior e Mi Bemol Maior, num ciclo que
se poderia repetir ad infinitum.
4) Ao final da
matéria, encontra-se: "...enquanto Coltrane começaria sua revolução que,
infelizmente, não se sabe até onde chegaria. Foi interrompida em 1967 pela
heroína que quase termina a carreira de Miles nos anos 50." Errado!
Coltrane se livra do vício no entorpecente durante o ano de 1957 (justamente
quando começa a tocar com Monk) depois de ter quase chegado ao fundo do poço.
Ele fala sobre a epifania que foi se livrar da dependência da droga inspirado,
segundo ele, pela força divina no texto que escreve para sua obra-prima "A
Love Supreme". Coltrane morre em 1967, dez anos depois de estar livre da
heroína, em decorrência de um câncer de fígado. Há quem atribua a doença a
abusos de álcool e narcóticos, enquanto outros chegam a mencionar inclusive o
esforço sobre-humano que Coltrane fazia durante seus longos e intensos
improvisos, mas são apenas ilações.
5) Por fim, sendo
um tanto quanto detalhista, é "Bitches Brew", e não Biches, sem o
“t”, como está escrito no artigo.
No mais, a matéria é bastante oportuna. Só acho,
humildemente, que um pouco de acuidade tanto na pesquisa quanto na escrita não
faz mal a ninguém.
Boa Brunão...
ResponderExcluirPassando a limpo as incompletas informações do dito jornalismo popular.
Um abraço!
Botou pra quebrar, Bruno, embora não tenha sido essa a sua intenção. Sou testemunha do seu esforço pela cultura e principalmente pela acuidade nas suas pesquisas e nos seus estudos musicais. Se há um cara perfeccionista em matéria de Jazz, aqui no Recife, este tem nome e sobrenome: Bruno Vitorino. Fiquem atentos os pseudo-críticos nesta área, porque nessa peneira "brunovitoriana" é difícil passar imprecisões. Uma verdadeira aula, com todas as nuances musicais e, principalmente, históricas de um período de ouro do Jazz americano cuja História você conhece como ninguém. Parabéns!!!
ResponderExcluirExcelente (e pertinente) comentário!! Muito importante você fazer esses esclarecimentos para nortear as pessoas que leram a matéria e acharam tratar-se da mais pura verdade. É inaceitável que pessoas que se dizem "críticos musicais" cometerem tamanho absurdo, e pior, que publiquem suas barbaridades em jornais de grande circulação. O seu comentário nos mostra o que realmente aconteceu entre (e com) Miles e Coltrane, trazendo uma abordagem histórica fundamentada em pesquisa, deixando claro que você tem conhecimento do que está falando, além de servir de alerta para o baixo nível de conhecimento (e diria até da irresponsabilidade) das pessoas que se dizem entendedoras do assunto, mostrando que nem tudo publicado nos jornais é verdade. Está na hora dos editores reavaliarem seus comentaristas musicais e também de cinema!
ResponderExcluirCristina Monteiro
Bom demais. Parabens pelas colocaçoes. E parabens tbm ao JC pela materia, mesmo que com algumas resalvas.
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