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O guitarrista Jimmy Page e o escritor William Burroughs. |
“Oh, Albion remains
Sleeping now to rise again”
A questão
fundamental antes, durante e depois deste texto é uma só: ROCK AND ROLL É COISA
SÉRIA. Há cerca de dois anos, me deparei com um link de internet para o resumo do que foi um dos encontros mais
primorosos da música contemporânea e que entrou para os anais das entrevistas
no mundo do rock. Em 1975, um dos maiores nomes da literatura beat e da chamada contracultura dos anos
50/60, William Burroughs, entrevistou Jimmy Page, para a Crawdaddy Magazine,
revista até então totalmente desconhecida por mim. Até hoje, nunca peguei em um
único exemplar físico, mas em algumas andanças online verifiquei tratar-se de uma revista especializada em
jornalismo musical, criada em meados dos anos 60 e que se destacou pela
abordagem frontal do fenômeno musical “rock and roll” - na verdade, parece que
o próprio periódico se autodefinia como sendo “a primeira revista que levou o
rock a sério”. Ao devorar o conteúdo dessa entrevista, mergulhei em insights profundos, despertados pelas
associações de ideias que aconteceram naquela conversa. Na verdade, vários
assuntos ali tratados alimentaram outros tantos insights que eu já havia tido, mas que ainda estavam crus, pedras
brutas, sem elaboração. A entrevista se deu depois de Burroughs assistir a um
show do Zeppelin, e as duas figuras trataram de falar de magia, de Aleister
Crowley, de experiências hipnóticas com infra-sons e mantras, das experiências
de indução ao transe na música sufi marroquina, dentre outras iguarias. Mas, do
material compilado ali, o que me reacendeu uma ideia antiga, para mim
nevrálgica, foram os questionamentos de Burroughs a respeito das possibilidades
mágicas e psicológicas da música em geral, e do rock em particular. Esse
escritor, que ajudou a revirar o baú escuro da alma humana pós-guerras
mundiais, aponta para outra dimensão quando pergunta:
“Music,
like all the arts, is magical and ceremonial in origin. Can rock music return
to these ceremonial roots and take its fans with it?” (Numa tradução livre: “A música, assim como todas
as artes, é mágica e cerimonial em suas origens. Pode o rock retornar a essas
raízes cerimoniais, conduzindo consigo os seus fãs?”).
E mais ainda
quando, ao tratar da aridez e estreiteza do pensamento ocidental contemporâneo,
aponta a estreiteza de visão e de escolhas em que nos enclausuramos, a partir
da cultura cristã e após o seu declínio,
“(...)when
all magic became black magic; that scientists took over from the Church, and
Western man has been stifled in a non-magical universe known as “the way things
are.” Rock music can be seen as one attempt to break out of this dead soulless universe
and reassert the universe of magic.” (...quando toda a magia foi tratada como magia
negra; os cientistas substituíram as igrejas, e o homem ocidental foi
enclausurado em um universo não-mágico, conhecido como “a maneira como as
coisas são”. O rock pode ser visto como uma tentativa de rompimento com esse
universo morto e sem alma, e recondução ao universo da magia).
E aqui chegamos a uma das sacadas mais geniais da contemporaneidade, a
Chave para entender o poder catártico da música e, mais especificamente, o fogo
devorador do rock and roll e como ele, o rock, insuflou a inquietação juvenil e
aventureira em corações procedentes de toda parte, se apoderou de traços
musicais do mundo inteiro e tocou, por assim dizer, a “Anima Mundi”, de
que os alquimistas falavam. Essa Chave explica também como o rock atuou na
minha própria vida, nas inúmeras vezes que me resgatou ou me conduziu pelo
abismo. Foi essa saída do árido e brochante “non-magical universe”, da vida sem
imaginação e sem encantamento e da recuperação da dimensão mágica que o rock
operou em zilhões de pessoas – e o fez de forma incendiária, num movimento
enfurecido e explosivo, sem muitas preliminares que, em suas duas primeiras
décadas, nem deu tempo às pessoas para se reposicionarem ou entenderem bem o
que estava acontecendo.
O fato é que o rock and roll ativou Imagens e Símbolos Primordiais
poderosos que estavam encerrados no nosso escuro, sob violenta e severa
vigilância das duas Grandes Inquisições – a inquisição religiosa cristã
medieval, que sistematizou o medo e a submissão, e depois, sua substituta, a
inquisição materialista, científico-industrial, com um igualmente severo Index
Librorum Prohibitorum, que nos precipitou no paralítico “non magical
universe”. O rock estremeceu sedimentos profundos de maneira tão desconcertante
e imprevisível que nenhuma construção científica, antropológica, nem nada que o
valha, me parece ser a maneira
apropriada de abordar esse xamã enlouquecido. O “rigor científico” não
tem acesso nem à sua sacristia. Apenas alguns deslavados enxerimentos
junguianos da minha parte me ajudam a vomitar uma intuição profunda que tenho
há tempos: o rock foi um poderoso catalisador e agente catártico no psiquismo
ocidental. Num grande festejo a um só tempo bacante, hermético e combativo, nos
conduziu a um contato com a dimensão fantástica da nossa Sombra, que vínhamos
de muito tempo evitando e mal conseguindo conter. E pagamos preços altíssimos
por isso. Então, poderosos Arquétipos foram movimentados. Um bestiário inteiro
foi acordado no nosso subterrâneo. Tido pelos prosaicos não-iniciados como uma
aparição do diabo, o rock foi na verdade o exorcista mais eficaz e fiel que
tivemos em atividade por cerca 30 anos. E falo no passado porque, para mim,
esse ente poderoso se retirou do cenário já há bastante tempo. Na verdade,
encerrou-se (ou está apenas em suspenso) sua ação mais ostensiva, frontal. Seu
período de movimentação na limpeza pesada da cabeça ocidental, quando operou de
forma crucial, foi mais ou menos de 1955 até cerca de 1985. Neste intervalo, a
grande atuação aconteceu. Se conseguimos ler o ideograma (ou hieróglifo)
desenhado pela trajetória do rock, nos deparamos com um tratado alquímico,
teatralizado com peso, sensualidade e fúria, bem escancarado na nossa frente.
Com efeito,
quando surge, a alma ocidental está mastigada por tudo o que foi o último
milênio. Um milênio denso e intenso, que assistiu ao apogeu e declínio da Idade
Média, à quase total destruição dos últimos núcleos de cultura pagã na Europa,
à Inquisição, à demonização da imagem da mulher, à tentativa de recuperação da
cultura clássica, à descoberta e colonização mortífera do Novo Mundo, à
empreitada iluminista de elaborar um gênero humano autônomo, racionalmente
situado e resolvido no mundo (mas que não conseguiu “ordenar” a vida interior
desse novo homem esclarecido e laico, nem livrá-lo de suas angústias mortais),
ao acontecimento de duas guerras mundiais, ao desenvolvimento das psicoterapias
e às primeiras tentativas científicas de desvendar e controlar a mente e, além
de tudo, ao crescimento devorador das tecnologias como nunca se viu. Esse
tumulto gigantesco pós-antiguidade clássica deixou nossa sociedade com muito
lixo em baixo do tapete, que se converteu numa verdadeira bomba-relógio
psicoemocional, por tudo que passou a ser difícil confrontar.
Estando o mundo
assim, ainda mais após a grande depressão econômica do início dos anos 30 do
séc. XX e o fim da Segunda Guerra, saindo de imensos tormentos e caminhando
entre o tédio e a incerteza – e, muitas vezes, desesperança -, e com a
instalação da Guerra Fria, começava a crescer uma geração de jovens com todos
os motivos pra não endossar e não sentir qualquer identificação com os modelos
rígidos do carcomido Ocidente, prontos para escrachar e ignorar todas as
falácias sobre heroísmo militar e poder econômico. Uma leva de jovens, nascidos
do meio para o fim da Segunda Guerra e que foram vítimas diretas ou indiretas
dela, começa a demonstrar abertamente o quanto despreza a roupagem das
sociedades puritanas da Europa e dos Estados Unidos e o quanto estão sequiosos
por outras histórias.
Esses jovens,
predominantemente brancos, muitos de origem proletária, tendo alguns crescido
nos subúrbios industriais das grandes cidades ou em zonas portuárias, ambientes
onde algumas escórias sociais se misturavam inevitavelmente, não tiveram
dificuldades em se aproximar dos sons hipnóticos desse submundo. Mesmo no sul
agrário e racista dos Estados Unidos, a figura central de Elvis mostra como
outro veio branco, distinto do racista, se esgueirava em meio ao
conservadorismo mais medíocre, e absorvia o gospel, o blues e o jazz. Negros,
ciganos, latinos, orientais – as bagagens sonoras desses universos proscritos
vinham à tona e encontravam muita gente com olhos, ouvidos e cabeça abertos,
prontos para se alimentar de tudo.
Os sons, cheiros
e sabores dos referidos submundos inebriaram esses jovens branquelos que não
faziam e nem queriam fazer parte dos salões de uma aristocracia velha,
criminosa, militaresca e obesa; apontavam e conduziam para os locais onde
acontece a farra, a mistura promíscua e alquímica de todos os elementos, as
três dimensões que vieram a ser o berçário do rock: os bares, a rua e a
estrada. O mitólogo Junito de Sousa Brandão diz que Hermes e Dionísio foram os
deuses gregos que mais estiveram misturados aos homens e, com isso, esse grande
mestre nos dá uma outra Chave para desvendarmos toda uma sorte de mensagens
renegadas por nossas idiossincrasias, que não nos permitem perceber
movimentações simbólicas extraordinárias, como por exemplo esta: só a
combinação poderosa e explosiva de Hermes com Dionísio poderia fazer nascer o
psicopompo boêmio que foi o rock and roll. Só os bares (território de Dionísio
por excelência) e a estrada (domínio de Hermes, que era deus das estradas e foi
o inventor da lira e da flauta) poderiam ser o laboratório mágico dessa música
vulcânica e catártica. Dionísio maneja os vícios e apetites sensuais dos
humanos, e Hermes é o deus que revela o que está oculto e o único com trânsito
livre entre os “três mundos”: o submundo profundo, o mundo dos homens e o
Olimpo - ou seja, Dionísio e Hermes combinam de forma ímpar o trânsito através
dos vícios reprimidos e das possibilidades sensoriais embotadas com a
elaboração musical e a revelação, propiciando uma erupção artística de escala
planetária que se instalou como uma escada para o escuro, para descermos com
alguma luz ao nosso mundo oculto, ou trazermos coisas de lá para a luz do dia,
nos fazendo compreender isto: só uma grande convulsão cultural
hermético-dionisíaca estaria habilitada a enfiar a mão na ferida puritana e
simplista do que havia se tornado o Ocidente, revolvendo com sofisticação ácida
(e lisérgica) e sensualidade incandescente a escuridão e as forças cegas mal
contidas sob os bons modos da razão adestrada.
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A carta do louco no tarô de Marselha. |
Preparado o cenário e com o advento do rádio e a popularização das
primeiras gravações em disco, a batida crua do blues foi subindo como fumaça de
incenso. Aquelas gravações rústicas de Robert Johnson e demais pioneiros dos
anos 20 e 30 apareceram enigmáticas e hipnóticas. Como fazer aquilo tudo apenas
com violões de cordas de aço e batendo o pé no chão? De repente, as incríveis
possibilidades da simples combinação voz humana/slide guitar abriu um horizonte
sonoro totalmente novo e desconcertante para os ouvidos atentos. Porque aquela
música não era apenas melancólica, como já tínhamos provado no romantismo
erudito e em alguns ritmos latinos; ela também tinha uma sonoridade rasgada,
cortante, e, mesmo sem ser propriamente “cigana”, sugeria as andanças. O boêmio
errante, com o violão dentro do case, viajando de trem de cidade em cidade,
brigando nos bares por causa de mulher ou jogo, proscrito, dormindo em muquifos
e bebendo e fumando muito. Essa imagem acompanha desde o princípio o imaginário
em torno do bluesman e oferecia perspectivas irresistíveis. Pegar a
estrada só com a guitarra debaixo do braço e partir para o mundo, de trem ou
pegando carona, com uma roupa surrada e ganhando dinheiro de bar em bar. Estava
plasmado um ideal que pertenceu a todos. A carta sem número do Tarô, o Arcano
“O Louco”, saiu de casa com uma mochila nas costas e um cachorro em seu encalço
– rumo ao precipício, muitos diriam. O Louco provocativo, desafiador e
revelador, começou uma jornada esperada há séculos, num feixe de energia
oscilatória entre o goliardo e o Cavaleiro.
Essa é, no
entanto, a parte mais exotérica e palpável desse novo “ideal”, porque, junto
com a aventura emerge também a - igualmente fascinante – aura do maldito. O
pacto com o diabo, a paisagem sombria, as entidades espectrais. Uma das lendas
que li não sei onde dizia que Howlin' Wolf foi possuído pelo espectro de um
lobo, para poder ter a voz que tinha. A célebre possível relação de Robert
Johnson com a magia negra e a venda da própria alma em um pacto, talvez numa
encruzilhada (tão conhecida da nossa macumba), não apenas nos apontam para o
capeta, mas também – de novo – para o ambiente hermético. Ora, Hermes é também
o senhor das encruzilhadas e também é ele quem nos leva e traz da escuridão
para a luz. A tentação que temos de encarar nossa própria sombra é proporcional
ao medo de fazê-lo, criando uma atração-repulsão que nos mantém confusos, numa
neblina de sensações imprecisas, enquanto não inventamos de fazer a caminhada
consciente.
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Cartaz do filme "A Encruzilhada", |
E para acender os
nervos de aço desse xamã em gestação, Muddy Waters ajuda a botar uma das
grandes forças cegas da vida a serviço da Opus: a eletricidade. No filme
“Crossroads” (no Brasil “A Encruzilhada”), ele é mencionado como o inventor da
guitarra elétrica. Ainda que não o tenha feito sozinho, foi sem dúvida um dos
pioneiros na eletrificação das bandas. A energia aterradora presente no trovão
é canalizada para dentro dos instrumentos, para produzir efeitos sonoros
inconcebíveis antes disso. Mas, é importante ressaltar: dentre os grandes
bruxos do blues, a força elétrica foi canalizada justamente pelo que carregava
o pântano em seu nome. As Águas Lamacentas trazem à tona todo o vigor simbólico
de outra lâmina, o Arcano XVIII do Tarô, a carta da Lua. É de “lua” (“luna”, em
latim) que vem a palavra “lunático”, característica atribuída aos xamãs,
oráculos e sacerdotes do transe em diversas culturas, e este é um Arcano que,
por sua vez, segundo alguns intérpretes, simboliza morte e renascimento, ou “a
reforma da casa”. O mestre tarólogo Pedro Camargo, por exemplo, interpretando a
carta da Lua, nos fala sobre essa empreitada: “Durante as obras (de reforma da
casa) haverá desconforto, sujeira, os esgotos estarão abertos e a presença de
micro-organismos que ameaçam a saúde será constante”. Não poderia haver
descrição mais cristalina do que foram a quebradeira e podridão promovidas pelo
rock em seu apogeu. E ninguém esqueça que o Arcano “A Lua”, no Tarô de
Marselha, traz em sua composição tanto lobos uivantes quanto um caranguejo que
sai da lama.
Para uma imensa
parcela de toda uma geração, tornava-se cada vez mais evidente que vínhamos nos
movimentando dentro de uma gaveta apertada, com percepções limitadas e
repetitivas. A sensação crescente de sufocamento dentro do consenso social e o
tédio face à repetição de padrões, dos discursos
religiosos/militares/científicos que não solucionavam nada, somados aos
caminhos recém-abertos pelas psicoterapias e ao desenvolvimento da
neurociência, assim como os primeiros contatos menos fantasiosos com as
religiões orientais e com as práticas xamânicas norte-americanas – todos esses
elementos inflamaram uma vigorosa intuição de que nossa mente abriga imensidões
muito maiores do que poderíamos perceber enquanto estivéssemos bem amestrados.
Havíamos engolido a sugestão (essa sim!) diabólica de soltar o Fio de Ariadne.
E a raiva contra essa condição estreita explodiu, como tinha que ser. Mas
ninguém tinha o mapa pra sair do labirinto.
Tudo bem, no fim
dos anos 50 do séc. XX as referências às práticas meditativas do Hinduísmo e do
Budismo já nos chegavam com mais facilidade e fidedignidade, ainda que muito
envoltas em uma capa de mistério esotérico/ocultista. No entanto, as então
encorajadoras pesquisas com LSD e a popularização de relatos detalhados sobre o
uso das plantas de poder pelos índios da América do Norte pareciam mais do que
um convite tentador: as substâncias psicotrópicas foram consumidas em
larguíssima escala, na tentativa de derrubar rapidamente os muros do nosso consenso
psicológico. Neste ponto, lembro a extraordinária e “matadora” conversa que a
Monja Coen, mestra zen budista brasileira, teve com seu mestre iniciador. Ela
nos relata, que em meio a toda a onda do psicodelismo, perguntou-lhe se eram
válidas quelas tentativas de expandir a consciência por meio das drogas, ao que
o mestre respondeu: “Para que tentar entrar pela janela se existe uma porta?”.
Sim, iniciávamos uma busca pelas portas, mas é evidente que tateávamos sem rumo
certo. Depois de tantos séculos de compressão da vida íntima, seja por sistemas
teológicos, seja mais recentemente pelas ditaduras filosóficas, econômicas e
políticas, sendo nossa alma conduzida à força a viver “do lado de fora” sob
vigilância atenta, é claro que nossa civilização não desenvolveu nenhuma
intimidade com o que quer que seja a mente e seus caminhos. No entanto, esse
sufocamento não conhece o perdão das potências psíquicas subterrâneas. A
atitude rock and roll de colocar dinamite nas portas das percepções foi o
ricochete irrefreável, o comando implacável: “Vamos derrubar essa porra desse
labirinto e colocar o Minotauro no trono de Creta!!!”.
Um novo
trovadorismo, lisérgico e elétrico, surge a partir das novidades testemunhadas.
A pseudo-confiabilidade dos nossas balizas lógicas e sensoriais é desmascarada,
nosso território sempre movediço se evidencia, e o que tanto nos confunde é
justamente a natureza deste jogo demiúrgico em que nos metemos. As letras
passam, então, a trazer tudo. O texto incandescente do rock visita lugares recônditos
dentro da nossa alma, fala das atuais guerras tecnológicas e também das
batalhas ancestrais, do nosso constante e mal-disfarçado flerte com a treva, do
transe esquizofrênico, da nossa insatisfação crônica e agônica e relata as
angústias dos profundos sofrimentos afetivos. Mas nossa experiência fugaz é
revista numa viagem de ressignifação; esse trovadorismo eletrificado surge
extraindo poder da grandeza épica de Tolkien, mergulhando nos vórtices abissais
de William Blake, provocando os símbolos da tradicional cristandade e
conduzindo ao salto no vazio interior – desligue, relaxe e escorregue no tobogã
buraco de minhoca, “it is not dying, it is not dying”...
O Turbilhão foi
acionado quando folk e o blues eletrificados botaram todo mundo na estrada, libertaram
a sexualidade e o gosto pelos psicotrópicos. A descoberta do formato “banda”,
montado sobre a estrutura bateria, baixo, guitarra e teclado (os teclados foram
vitais para a definição do som dos anos 60 e continuaram sendo vastamente
utilizados por todas as experiências do progressivo) ajudou a elaborar uma nova
configuração de postura no palco e de relação artista-público. O hard rock
aterrou as vibrações, trazendo peso, velocidade, fúria, criando os sons
energéticos de uma música a um só tempo de farra e de guerra. O peso aumentou –
a velocidade também e a fúria também – e o metal, definitivamente desenhado,
com suas inúmeras vertentes, como se fossem uma grande rede de cavernas
subterrâneas, fez ecoar sons grandiosos e sombrios e os gritos guturais de
dragões enjaulados, ansiosos por alçar voo, enquanto o vômito do punk
esculhambou merecidamente a afetação da “nobreza” ocidental, com um chute na
porta e um soco no estômago, como numa gloriosa briga de rua. E as odisseias
sonoras das muitas vertentes do progressivo tanto reconfiguraram a herança
medieval e a melancolia romântica, quanto canalizaram sonoridades siderais que
pareceram desenhar a trilha sonora perfeita para a ficção científica. Seus
temas épicos, gigantescos, sem refrão e sem os tempos e os ciclos melódicos
simples que compõem a nossa zona de conforto, usualmente ignoram nossa
linearidade lógica, num território de experiências musicais que flutua do mais
encantador lirismo às raias do bizarro, até hoje abrindo portais para um
sem-número de universos paralelos. E, assim, franqueando o acesso a um jardim
de infinitas veredas que se bifurcam, o vastíssimo rock and roll ajudou
incontáveis viajantes a se libertarem do que há de mais ordinário na mente
ordinária, injetando uma qualidade de força que impulsionou milhões a se
rebelarem e enfrentarem os medos, a humilhação, a desolação e o aparente
absurdo de estarmos aqui.
Um processo de
recomposição do tecido humano ocidental se desencadeou em amplitude inesperada.
A fornalha pulsante desses novos padrões musicais, para realizar a Opus a que
se propôs, se alimentou de todo o material humano que pudesse encontrar e, para
tanto, fez irromperem buscas por todos os símbolos e fragmentos possíveis da
nossa história conhecida, bem como da nossa história imaginária. Os ocidentais
começaram por pedir a bênção ao blues e, daí por diante, a todos: foram
aprender com a Índia, com o Marrocos, com os vestígios árabes na Ibéria, com os
ciganos, com o Vodu. Procuraram sofregamente nutrição nos seios de suas culturas-mães,
em todas as tentativas de reaprender o paganismo, aprender as cantigas
medievais, recuperar todos os símbolos esquecidos da era da Cavalaria, a
bruxaria, as memórias celtas e vikings, a Bíblia, a magia cerimonial. Ao longo
de toda a sua história, após o fim da civilização clássica, o Ocidente só
conseguia materializar sua escuridão na forma dos três flagelos do Apocalipse:
a Guerra, a Fome e a Peste (e a Morte provocada pelas três). Mas quando o rock
and roll estava na plenitude de sua fúria incendiária, nossa civilização
conseguiu engendrar, à luz do dia, algo que nunca tinha sido visto e ninguém
imaginaria antes: conseguimos fazer, em escala planetária, A REPRESENTAÇÃO
LÚDICA DA NOSSA SOMBRA. Revolvendo todos os parâmetros com os quais o Ocidente via
a si mesmo e se relacionava com o resto do fenômeno humano e desaguando também
em terras do Leste, estava lá, tudo no palco, nas capas dos discos, no
imaginário em torno de cada banda. Gemidos, grunhidos, gritos, rebolados,
irreverência, sexualidade escancarada, os ritos orgiásticos com as groupies (repetidos anonimamente por
milhares de fãs). O cotidiano prosaico nunca mais foi o mesmo depois dessa
martelada de Thor.
Passada a fúria, ele, o rock, se encontra atualmente sem bons médiuns
em atividade, mas parece estar oculto entre nós, uma entidade sem forma, num
silêncio soturno, irrompendo aqui e acolá - como os deuses da antiguidade, que
não são mais venerados, mas que, em sã consciência, ninguém ousa dizer que não
existem. Nos segurando na borda do Grande Vulcão, nos ensina a olhar para
dentro do abismo onde escorrem sete quedas de lava e de marfim, ao passo que
nosso centro de poder interno se acende como um acelerador de partículas.
Muitos foram devorados pela energia cáustica que foi liberada, assim como
muitos antes haviam perecido de apatia. Inúmeros caíram atordoados pelos
movimentos tectônicos das nossas últimas convulsões culturais, e outros tantos
pareceram enlouquecer ante as visões que se descortinaram. Mas, aqueles que vão
além do transe bioquímico, que escapam tanto do enrijecimento quanto dos
curtos-circuitos neurais, que atravessam a espessa massa de barulho – esses,
terminam desaguando num vasto espaço sem dimensões, suspensos em ondas de
silêncio profundo e, turbinas acionadas, escutam o que parece ser o sussurro
primordial: “Set the controls for the heart of the sun, the heart of the sun...
THE HEART OF THE SUN!”.