"Numa manhã, ao despertar de
sonhos inquietantes, Gregor Samsa deu por si na cama transformado numa
gigantesca lombriga." Esse bem que
poderia ser o início do livro A
Metamorfose se Franz Kafka fosse recifense. Imagino que ao invés de
discorrer alegoricamente sobre a opressão esmagadora de um pai austero e quase
sádico, o autor extrapolaria os demônios de seu núcleo familiar para retratar
os tormentos que nascem de se descobrir um verme numa cidade que não passa de
um amontoado de bosta.
Explico:
Obviamente que amo o Recife e que
escrevo isso sob o ímpeto do desgosto e o assombro do desespero. Mas, infelizmente
não há como ser de outra maneira... Aqui impera um “salve-se quem puder”
generalizado de modo que uma verdade tão banal como a ideia aristotélica de que
os seres humanos vivem em sociedade em busca do bem comum não passa de um
devaneio. Alguns chegam mesmo a afirmar inclusive que se trata de um desejo
pequeno burguês demais para ser implementado por essas terras. Síndrome de
colonizado, vontade de ser americano - eles se referem aos EUA - e outras baboseiras
que reverberam feito mantras nos diretórios acadêmicos dos cursos de ciências
humanas (sou formado em História e já ouvi muito esse papo). Legal mesmo é
socializar a miséria!
Hoje o Recife irradia um tacanho bairrismo
materializado no pior dos sentidos: a cegueira crônica ante suas mazelas.
Em qualquer direção que se olhe,
há uma transgressão, um desrespeito à regra, uma agressão à ideia de comunidade.
Do motorista que não respeita a faixa de pedestre, passando pela construtora
que desconsidera o interesse público para especular livremente com a conivência
da presente gestão municipal e da sociedade civil (afinal há quem compre esses
empreendimentos, não?), chegando ao prefeito recém-eleito que estranhamente
nomeia um Secretário ficha-suja para compor o primeiro escalão de seu governo. É
algo tão endêmico em nossa sociedade que transcende a normalidade para descambar
na naturalidade. E essa diferença, meus caros, é crucial, pois o “normal” são práticas
sociais de uma comunidade amalgamadas e significadas por um aparato
cultural/ideológico que distingue e legitima esse grupo, ou seja, é o conjunto
de símbolos que dá sentido a esse microuniverso. Já o “natural” é quando esses
signos são introjetados de tal forma que são vistos como condição intrínseca ao
Ser Humano. No nosso caso, é a naturalização do “jeitinho”.
Pois bem, ontem (20/12) após um
dia de muito trabalho e do desgaste que é o embate com a Rua, chego à minha casa
para, enfim, por os pés para cima e apenas existir. Tudo corria bem até que, às 21h, fui violado
no meu direito de descansar em minha residência. Nesse horário, deu-se início a
uma festa de confraternização (eu acho) da Luni Produções que fica exatamente
ao lado de minha morada. Barulho, música ensurdecedoramente alta (com banda
inclusive), gritos e burburinho; toda essa combinação numa área estritamente
residencial! Resultado: ninguém dormiu até as 2h da matina, quando a festa foi
minguando.
Fiquei perplexo! O que faz com que essas pessoas se sintam no
direito de perturbar o sossego de todos os moradores do entorno? O fato de
serem artistas? A inconsequência do desinteresse pelo Outro? E logo essa turma descolada
que prega o discurso de "uma cidade para todos", participa de
movimentos #Ocupe(...) e outros engajamentos políticos supostamente intelectualizados.
Pois é! Justamente eles, sem o menor pudor, desconsideraram esses preceitos de
uma cidade mais humana para incomodar toda uma vizinhança de trabalhadores
apenas para promover vernissages de "ver e ser visto" nesse teatro
dos vícios em que vivemos. Afinal, uma festa na Luni Produções é sinal de, hipoteticamente,
distinção artística e, quiçá, social! É como um carimbo a referendar a sua
entrada numa espécie de seleto grupo de artistas alternativos locais bem
sucedidos. É quase um privilégio ser convidado. Por que então esses eleitos dos
deuses haveriam de se preocupar com os reles mortais que acordariam cedo no dia
seguinte para pegar no batente?
“Mas, nada está tão ruim que não possa
piorar”; é o que dizem. Meu filho, um bebê de 6 meses e 20 dias, acabou acordando
com toda essa balbúrdia. “Fodeu! Puta que pariu! E agora?!”, pensei. No auge do
desespero, liguei para a polícia. “Já existem outras reclamações iguais a sua,
senhor. A viatura já partiu para o local”. Alívio... Mas, depois de esperar em
vão a chegada das autoridades e experimentar a raiva, a desesperança, a angústia
e, por fim, a frustração; despertei de meu estado letárgico. De Recife, a
Veneza brasileira ao Hellcife, o inferno na Terra. Como num livro de Kafka, de
súbito, parecia que eu tinha sido arrancado de uma paisagem onírica e me vi um
verme com merda até a cabeça!
Quem quiser que veja poesia num
lugar onde todas as pessoas carregam o medo perene de ter uma arma apontada
para sua cabeça, onde o carro impera em detrimento do transporte público, onde
prédios brotam como se fosse mato sem qualquer planejamento, onde o shopping é
a redenção lúdica da população, onde não se pode sequer dormir em paz depois de
um dia duro... Eu vejo apenas caos!
Enquanto situações como a que
relatei ocorrerem naturalmente, o Recife que carrego no peito será apenas uma
idealização e estaremos a chafurdar em nossa própria lama. Como podemos ser uma "cidade mais humana" se uma das regras mais básica da vida em sociedade – a lei
do silêncio – não é respeitada?!
Um Novo Recife... Só rindo! Não
conseguimos nem nos livrar do velho.